A presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministra Rosa Weber, incluiu na pauta desta quarta-feira (7) o julgamento das ações que questionam a legalidade do orçamento secreto, como são chamadas as emendas de relator-geral, que têm menos transparência em relação ao parlamentar responsável pela indicação e à destinação dos recursos — e abrem caminho para casos de corrupção.
Entenda o que é o tema e o que está em julgamento:
1. O que é o orçamento secreto?
De acordo com a Constituição Federal, emendas parlamentares são um instrumento do Congresso Nacional para participar da elaboração do Orçamento anual. Os deputados e senadores têm, nesse caso, a oportunidade de indicar demandas ao Executivo.
Atualmente, há quatro tipos de emendas parlamentares:
Individuais (RP6): verba destinada individualmente a parlamentares, com caráter impositivo desde 2015. Ou seja, cada parlamentar decide como alocar o dinheiro e essa emenda é obrigatória, precisa necessariamente estar no Orçamento;
De bancada (RP7): verba destinada às bancadas estaduais, com caráter impositivo desde 2019. São emendas coletivas, elaboradas por deputados do mesmo estado ou região. Também obrigatórias;
De comissão (RP8): verba destinada às comissões temáticas do Congresso. São emendas coletivas de comissões permanentes da Câmara ou do Senado. Não são obrigatórias;
De relator (RP9): emenda que permite ao relator-geral do PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) alterar ou incluir despesas. Criada em 2019 e não é obrigatória.
A emenda de relator (RP9) se diferencia das demais porque é definida exclusivamente pelo parlamentar escolhido como relator-geral do Orçamento, responsável pelo texto do PLOA que será votado e que negocia a alocação de recursos entre Executivo e Legislativo. Além disso, ao contrário das outras, não há critério definido quanto ao destino do dinheiro, o que dificulta a fiscalização sobre a execução da verba.
Essa fatia do Orçamento federal é chamada de “secreta” porque não existem regras estabelecidas para a destinação das verbas. Conforme explica reportagem do UOL, não há transparência para acompanhar para qual área os valores de emendas do relator estão sendo destinados. Esse cenário faz com que a fiscalização por parte da sociedade seja dificultada.
Além disso, ao contrário do que ocorre com as emendas parlamentares impositivas — aquelas que todos recebem igualmente, sem distinção de quem compõe base ou oposição —, no orçamento secreto não é possível saber qual parlamentar indicou o valor, já que a informação não é pública.
Na Lei Orçamentária de 2020, o Congresso aprovou a ampliação para R$ 30 bilhões das cifras destinadas para as emendas de relator-geral. No sistema do Congresso, o único nome que aparece na destinação dessas emendas é o do relator, que pode encaminhar os recursos a partir de indicações de outros parlamentares, sem transparência — por isso é chamado de “secreto”.
2. Quem criou o orçamento secreto e qual é o papel de Bolsonaro?
Em outubro de 2019, o Congresso aprovou a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2020, tornando obrigatória a execução de emendas RP9 — embora as emendas de relator tenham sido utilizadas em anos anteriores. Bolsonaro sancionou a LDO, mas vetou o caráter impositivo das emendas, o que desagradou parlamentares.
Depois, o governo enviou um projeto de lei (PLN 51/2019) para restabelecer na LDO o caráter impositivo da RP9, aprovado simbolicamente pelo Congresso, sem votação nominal. Bolsonaro sancionou a lei, mas voltou a vetar o caráter impositivo das emendas. Um acordo firmado com o Centrão assegurou a manutenção do veto por 398 votos a favor e dois contrários na Câmara, sendo que a matéria não precisou ser analisada no Senado. Com isso, os deputados e senadores ganharam o direito de indicar, por meio do relator do Orçamento, emendas totalizando R$ 20,1 bilhões.
Em 2020, Bolsonaro vetou o trecho que previa o uso de emendas de relator na LDO de 2021, mas o Congresso derrubou o veto. Assim sendo, ficou a cargo do relator — por meio de acordo com deputados e senadores — a destinação de R$ 18,5 bilhões.
Em 2021, Bolsonaro vetou um dispositivo que buscava obrigar a execução de emendas RP9 no Orçamento para 2022, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. Na Câmara dos Deputados, 431 dos 453 parlamentares votaram pela derrubada do veto e 22 pela manutenção. No Senado, foram 55 votos pela derrubada do veto.
Em 2022, durante a tramitação no Congresso da LDO de 2023, o relatório do senador Marcos do Val (Podemos) tentou tornar impositivas as emendas do relator, mas esse trecho foi removido. O uso das emendas RP9, no entanto, cuja previsão é que alcance R$ 19,3 bilhões, foi mantido.
3. Quanto dinheiro foi destinado ao orçamento secreto?
Segundo o Siga Brasil, site mantido pelo Senado Federal com dados do Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira) do governo federal, entre 2020 e 2022 foram autorizados R$ 53,5 bilhões em emendas de relator-geral. Desse montante, R$ 45 bilhões foram empenhados e R$ 28,9 bilhões, pagos. Essa cifra, como mostra o gráfico acima, superou as emendas individuais de parlamentares e também as de bancada, cuja transparência relacionada aos valores destinados a cada deputado ou senador é assegurada pela legislação.
Levantamento do pesquisador Marcos Mendes, do Insper, com base em dados compilados até abril de 2022, mostrava que as emendas correspondem a 24% das despesas discricionárias — ou seja, aquelas que não são obrigatórias — do Orçamento federal.
4. Por que o orçamento secreto é associado à corrupção?
Como cabe ao relator-geral do orçamento designar quem receberá os recursos das emendas, o tema se tornou um instrumento de negociação que inclui não apenas parlamentares, mas também pessoas sem mandato.
O jornal O Estado de S. Paulo, que revelou a alta na alocação de dinheiro para essas emendas, publicou diversas reportagens mostrando indícios de corrupção:
Prefeituras compraram tratores por valores até 259% acima do preço de mercado com verbas dessas emendas;
Caminhões de lixo comprados com dinheiro do orçamento secreto somaram R$ 109 milhões;
Parlamentares prometeram construir escolas milionárias com verbas ainda não destinadas;
Obras de poços de água bancadas pela Fundo Nacional de Saúde (Funasa), um dos principais destinos de emendas, continham indícios de sobrepreço.
As verbas também inflaram as despesas de pequenos municípios. A revista piauí revelou que a cidade de Santa Quitéria do Maranhão (MA) informou um gasto de R$ 4,6 milhões ao DataSUS em 2019, ante R$ 280 mil no ano anterior. Esse montante seria suficiente para realizar 96,8 mil atendimentos de urgência por médicos especializados, em uma cidade de pouco mais de 30 mil habitantes.
A cidade de Igarapé Grande (MA) teria atraído R$ 6,7 milhões do orçamento secreto em 2021, o que lhe garantiria o maior índice de gasto por habitante em saúde no Brasil: R$ 590. Em outubro de 2022, duas pessoas foram presas em uma operação que apurava desvios de verbas do orçamento secreto em Igarapé Grande.
5. O que será julgado no STF?
O STF julgará três ADPFs (arguições de descumprimento de preceito fundamental) que questionam a legalidade do orçamento secreto, propostas por quatro partidos: Cidadania, PV, PSOL e PSB, esses três últimos da base do futuro governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O julgamento está marcado para esta quarta-feira (7).
A relatora é a presidente do STF, ministra Rosa Weber. Em novembro de 2021, ela julgou que deveriam ser suspensas as execuções das emendas do orçamento secreto e criado um sistema para assegurar a transparência dessas despesas, e o plenário do STF confirmou a sua decisão por 8 votos a 2.
Entretanto, após pedido dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), Rosa Weber liberou a execução das emendas em dezembro de 2021. Lira e Pacheco argumentaram que suspensão do dispositivo poderia paralisar setores fundamentais da administração pública. A ministra, na liberação, ponderou que a distribuição de recursos deveria ser tornada pública em até 90 dias.
Em março de 2022, o Senado pediu mais tempo para cumprir o prazo, alegando que publicar nome e destinação dos parlamentares beneficiados com as emendas de relator era uma tarefa complexa e que não havia banco de dados organizado. Rosa Weber manteve o prazo, e a Comissão Mista de Orçamento passou a divulgar a destinação das verbas.
Entretanto, o sistema dificulta o acesso aos dados. As páginas onde estão os parlamentares que indicaram as verbas e a execução destas são diferentes. Além disso, em algumas das planilhas, os autores que aparecem são usuários externos, o que dificulta entender qual deputado ou senador apadrinhou o recurso. A última planilha foi publicada em julho de 2022.
Em novembro de 2022, a PGR (Procuradoria-Geral da República) disse que as medidas usadas pelo Congresso para dar transparência às emendas de relator são constitucionais, e pediu para que o STF não leve adiante as ações dos partidos no STF.
CORREÇÃO: esta checagem foi alterada às 16h40 do dia 7 de dezembro de 2022 para corrigir a transcrição da sigla ADPF, que é “arguição de descumprimento de preceito fundamental”.
fonte: Site Terra