Em entrevista ao O GLOBO, o monge Daniel Calmanowitz, de 69 anos, professor e instrutor de prática e filosofia budista no Centro de Dharma da Paz e diretor da Fundação Lama Gangchen para a Cultura de Paz, de São Paulo, diz que não há lugar para o erótico no ambiente monástico e que sua prática budista o impede de julgar o Dalai Lama.
Na segunda-feira, um vídeo mostrou, em uma audiência de fevereiro em Dharamsala (norte da Índia), Tenzin Gyatso, 87 anos, maior líder espiritual do Tibete, laureado com o Nobel da Paz, beijando uma criança na boca em uma audiência. Em seguida, pediu que ela chupasse sua língua.
Em nota oficial, o atual Dalai Lama pediu desculpas à família e à criança “pela dor que suas palavras possam ter causado”. No comunicado não há menção nem ao beijo nem ao pedido feito à criança, denunciados tanto por profissionais especializados no combate e acolhimento de vítimas de abuso quanto pelo “tribunal” das redes sociais. “Sua Santidade costuma brincar com pessoas que conhece de maneira inocente e brincalhona, mesmo em público e diante das câmeras”. O texto informa ainda que o menino teria perguntado ao líder espiritual se ele poderia lhe dar um abraço.
Calmanowitz enfatiza não representar o budismo no Brasil (não há formalmente uma liderança local para os pelo menos 243 mil praticantes no país, de acordo com o Censo de 2010). Ele conviveu com o Dalai Lama na Índia e argumenta que diferenças culturais podem ajudar a explicar o vídeo. Formado em engenharia, pratica o budismo desde 1987 e tornou-se monge em 2011. Um de seus dois filhos, Michel, foi identificado Lama aos 8 anos, e aos 12 reconhecido formalmente pela sociedade tibetana. Com o pai, viveu a rotina dos monastérios. E “jamais presenciei ato de pedofilia ou abuso. Nunca teve isso”, afirma.
Qual foi a sua reação ao vídeo?
Quem sou eu pra julgar. Um dos pontos centrais da minha prática budista é não apontar o dedo ao outro. Costumamos lidar com realidades subjetivas de forma objetiva. Na medida do possível, claro, procuramos tirar o julgamento da frente. Vi, mas não vou julgar o Dalai Lama.
O senhor conviveu com o atual Dalai Lama na Índia, certo?
Nunca sozinho, sempre em grupo, mas tive vários ensinamentos dele, que sempre me inspirou muito. Realmente é um mestre, não só por seu conhecimento, mas pelo amor. Sinto que é uma pessoa espiritualmente evoluída.
Há algum hábito social ou cultural tibetano que explique o que se vê no vídeo?
O Dalai Lama se desculpou lembrando que é uma pessoa brincalhona. E há, sim, diferenças culturais. Não adianta contar uma piada ocidental para um tibetano, por exemplo, ele vai ficar te olhando sem entender, tive essa experiência. E o contrário também é verdade. Ainda mais dentro de uma sociedade monástica. Os monges tibetanos têm muito humor, um tira sarro do outro, conseguem ser muito leves. E tudo de forma saudável.
Fonte: O Globo