Em 7 de setembro de 2022, Maria* abriu a porta do apartamento onde estava hospedada, em Dubai, rica cidade dos Emirados Árabes Unidos incrustada no meio do deserto. A mulher, que é trans e viajou ao país árabe para comemorar o aniversário de um amigo, esperava encontrar um conhecido, mas, quando abriu a porta, encarou quatro homens que nunca tinha visto antes.
Sem conhecer inglês ou árabe, Maria ainda não sabia, mas era acusada pelos policiais à paisana de tráfico de drogas. O conhecido com o qual a mulher trocava mensagens é um traficante: ele havia sido preso naquele mesmo dia. Quem marcou o encontro com Maria foi a própria polícia. Seria o que, no Brasil, chamaríamos de um flagrante forjado.
Num país famoso pelo seu desprezo aos direitos humanos, especialmente quando diz respeito à população LGBTQIA+, aquele era o início de uma série de abusos por parte de cidadãos de um país estrangeiro e — segundo conta a mulher trans — negligência por parte do corpo diplomático brasileiro que serve nos Emirados Árabes.
Depois de passar quatro meses presa, Maria conseguiu autorização judicial para responder ao processo em liberdade. De um quarto na cidade conhecida por suas boates e vida noturna, a mulher trans conversou por cerca de duas horas com a reportagem por chamada de vídeo, onde relatou o que viveu no país árabe.
Sem direito a defesa
Maria é uma jovem com idade entre 25 e 30 anos e nordestina. Ela toma hormônios para que a aparência de seu corpo esteja de acordo com sua identidade de gênero, o que a deixa com traços femininos. Depois que os policiais abriram a porta, uma das primeiras perguntas foi se ela é homem ou mulher.
“Eles não têm uma palavra para pessoa trans, eles falam ‘lady boy’ ou ‘lady girl’. Queriam saber se eu era operada”, resume Maria. No fim, os policiais decidiram por ela: na verdade, “Maria é um homem”. Usando uma toalha quando os policiais entraram no apartamento, foi obrigada a se vestir sob os olhares dos desconhecidos.
“Me levaram pra uma cela na própria delegacia com rapazes que ficaram fazendo piada”, lembra Maria. Depois disso, as autoridades pediram que ela fizesse um exame toxicológico por meio da coleta de urina. “Fui me sentar para fazer, que é o jeito que estou acostumada”, diz ela. “Mas eles me proibiram”.
Maria ficou tão nervosa de precisar urinar em pé na frente dos policiais que não conseguiu realizar o exame. Foram três tentativas. Para a autoridade policial, a mulher se recusou a colaborar, entendimento que lhe custaria caro.
Nove dias depois, houve uma audiência. No tribunal, o problema de comunicação foi ainda pior. Maria disse que não conseguiu explicar que não tinha feito o exame em decorrência do nervosismo. Ela, segundo seu relato, passou todo o tempo em frente ao juiz sem um advogado que a defendesse e sem a ferramenta da linguagem para falar por si mesma.
“Se aproveitaram de mim”
Sem direito a defesa, ficou determinada a prisão. No mesmo dia, só com a roupa do corpo e o passaporte, Maria foi levada à penitenciária.
“Fui revistada por homens que se aproveitaram, eu não podia fazer nada. Ficava morrendo de medo do que eles poderiam fazer comigo, não podia me mover enquanto eles tocavam em mim”, contou. Ainda na entrada, falaram que ela precisava cortar o cabelo. Ela implorou para que não fizessem isso e os homens cederam.
Mas mesmo esse gesto de bondade não veio sem benefícios aos carcereiros, segundo ela.
Assédio sexual: entenda o que caracteriza o crime e onde denunciá-lo
“A maioria dos policiais pedia pra ver meus peitos, meu corpo. Diziam que, se eu não mostrasse, cortariam meu cabelo. Não sei se era verdade, mas eu estava muito aflita com o que podiam fazer comigo”, contou Maria.
Ela conta que, usando a mesma roupa, o uniforme da prisão, passou os dias sem se alimentar numa cela com pouca higiene e com presença de baratas. “Um dia, um policial me deu um sabonete para que eu tomasse banho”, lembrou. “Mas só porque queria me ver nua”.
“Negligência da embaixada”
Dizendo ter passado por um processo judicial viciado, Maria acusa também a representação diplomática do Brasil nos Emirados Árabes, desta vez, por negligência. Em busca de ajuda, ainda quando estava na delegacia, ela precisou insistir muito, enquanto gesticulava, para conseguir uma ligação.
Ela ligou para uma familiar e avisou onde estava. A familiar avisou o corpo diplomático nos Emirados Árabes com sucessivos e-mails. Ainda assim, a representante da embaixada só visitou Maria três semanas depois de ela ser detida.
“Uma assistente da embaixada entrou em contato, falei para ela que estava todo esse tempo sem comer, que tinha pegado doença de pele porque o lugar é sujo. Mas fui muito julgada, ela citou várias coisas que eu já sabia: ‘Como você, que é trans, vem para um país que odeia trans. Você sabe que aqui é crime’”, rememora.
O site da Embaixada do Brasil em Abu Dhabi afirma que o corpo diplomático não fornece assistência jurídica nem envia representantes em audiências judiciais. A postura da embaixada nos Emirados Árabes diverge de outro rumoroso caso envolvendo o Itamaraty: o das goianas presas injustamente na Alemanha. As duas mulheres elogiaram a postura dos diplomatas para a resolução do caso.
Outra “negligência” apontada por Maria é que a embaixada teria dado informações imprecisas sobre uma audiência. Quatro meses depois de ser presa, em 8 de fevereiro, ela passou por uma nova audiência. Já em contato com a família, um dos parentes pediu orientações à representação brasileira em Abu Dhabi.
“A pena dela, como está hoje, é de multa por não ter fornecido o exame necessário para a investigação (de urina) nos primeiros dias após a detenção. Não é possível um agravamento da pena após a segunda instância, ou seja, vão manter a multa como está ou pode considerar uma diminuição do valor, caso seja solicitado pela ré ou seu advogado”, escreveu a Embaixada do Brasil em Abu Dhabi em um e-mail remetido a um familiar de Maria.
A previsão otimista, no entanto, não se concretizou. Nesse dia, Maria foi condenada a 2 anos de prisão e a pagar uma multa de 100 mil dirhams, o que equivale a R$ 135 mil.
Apelação em liberdade
Apesar de não ter ajuda da embaixada, Maria é representada por um advogado que entrou com uma apelação — uma espécie de recurso na mesma instância — e conseguiu para ela o direito de esperar a apreciação dessa apelação em liberdade. Essa liberdade, no entanto, é apenas parcial. Sem tomar os hormônios há oito meses, ela voltou a ter traços masculinos e, quando ousa sair na rua, é hostilizada.
O que diz o Itamaraty
A reportagem perguntou ao Itamaraty qual o protocolo a seguir para brasileiros presos no exterior, por que a embaixada em Abu Dhabi não presta assessoria jurídica, qual a diferença do caso de Maria para o caso das goianas presas na Alemanha, sobre a atuação da tal servidora que julgou as decisões da brasileira detida e o que o Itamaraty pode fazer para repatriá-la.
A pasta informou que acompanha o caso desde setembro de 2022. No entanto, não o comentará em razão do respeito a privacidade.
Fonte: Metrópoles