Por Adriana Ramalho
A adoção transforma vidas — da criança que sai de uma situação de vulnerabilidade para um lar, da família que acolhe e da sociedade que se depara com dilemas éticos e estruturais. Mas a adoção também é um processo que atravessa a construção da identidade infantil: as perguntas sobre origem, pertencimento, memória e vínculo acompanham muitos adotados por toda a vida. No caso da adoção tardia — quando crianças e adolescentes são acolhidos mais tarde, muitas vezes com vivências prévias de acolhimento institucional, rupturas familiares e traumas — esses desafios ganham urgência e complexidade. Este artigo analisa evidências científicas e dados nacionais e internacionais para entender como o processo adotivo influencia a formação da identidade e quais políticas e práticas podem reduzir riscos e fortalecer o pertencimento.
O panorama no Brasil: números e obstáculos
O cenário oficial mostra uma contradição: existem dezenas de milhares de brasileiros inscritos para adotar e milhares de crianças e adolescentes ainda aguardando acolhimento. Em audiência pública realizada no Senado, com base em dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), havia, em 26 de maio de 2025, 5.256 crianças e adolescentes para adoção e 33.409 pessoas inscritas como pretendentes — um sinal de que o problema não é apenas falta de interessados, mas descompasso entre perfis procurados e perfis disponíveis. Desde 2019, registraram-se 27.479 adoções no país. Apesar disso, a preferência por crianças pequenas e “perfis ideais” mantém boa parte dos adolescentes e das crianças mais velhas à margem. Reportagens e levantamentos apontam que, em 2023, apenas cerca de 2% dos pretendentes aceitavam crianças com mais de 10 anos, o que alimenta a existência de uma fila de adoção tardia e amplia o tempo de permanência em abrigos. Esse hiato tem impacto direto sobre a formação identitária e o desenvolvimento socioemocional dessas crianças.
Como a adoção influencia a formação da identidade
A identidade infantil se constrói em camadas: narrativas familiares, memórias, reconhecimento social e vínculos afetivos. Para crianças adotadas, especialmente quando há pouca informação sobre a origem, essa construção pode enfrentar lacunas. Pesquisas longitudinais e revisões da literatura indicam que os adotados podem apresentar mais desafios relacionados à saúde mental — em especial ansiedade, sintomas depressivos e dificuldades de ajustamento — em comparação a populações não adotadas. Fatores de risco incluem experiências adversas prévias (abandono, maltrato, institucionalização), lacunas na informação sobre a história de origem e rupturas repetidas de vínculos.
Estudos clássicos e contemporâneos sobre identidade adotiva destacam dois pontos centrais: 1) a narrativa — o modo como a história da adoção é comunicada à criança — e 2) a qualidade das relações com os cuidadores adotivos. Quando famílias acolhedoras constroem uma narrativa coerente, aberta e sensível sobre origem, e quando oferecem apoio emocional consistente, adotados tendem a integrar a experiência de adoção de forma mais saudável em sua identidade. Por outro lado, segredos, omissões ou mensagens ambivalentes sobre a adoção aumentam dúvidas identitárias e sentimentos de desencaixe.
Adoção tardia: desafios específicos para identidade e pertencimento
A adoção tardia costuma envolver crianças e adolescentes que já passaram por múltiplas rupturas — lares temporários, perda de referências e, frequentemente, traumas de negligência ou abuso. Essas vivências anteriores moldam expectativas e comportamentos que podem dificultar a vinculação segura com novos cuidadores. Estudos qualitativos apontam que adotados tardios frequentemente relatam conflitos sobre lealdade (entre a família biológica e a adotiva), dificuldades em confiar em adultos e problemas para construir narrativas coerentes sobre si mesmos.
Além disso, fatores como raça/etnia, diferenças culturais entre família de origem e família adotiva e a possibilidade de adoção intercountry (intercâmbio entre países) exigem que o processo de construção identitária inclua reconhecimento e afirmação da herança cultural e racial do adotado — caso contrário, há risco aumentado de sentimentos de alienação e baixa autoestima. Organismos internacionais, como a Convenção de Haia sobre adoção internacional, ressaltam a importância de proteger a identidade e os direitos culturais das crianças em adoções transfronteiriças.
Consequências para saúde mental e escola
Relatórios globais sobre saúde mental infantil, como o “State of the World’s Children” da UNICEF, mostram que a infância e adolescência são momentos críticos para o desenvolvimento emocional — e que adversidades precoces elevam o risco de problemas psicológicos ao longo da vida. Para adotados, especialmente os tardios, a soma de experiências adversas e de exclusões identitárias pode se manifestar em baixo rendimento escolar, evasão, comportamentos externalizantes e procura por serviços de saúde mental. Investimento em acompanhamento psicológico especializado, programas escolares inclusivos e suporte familiar fazem diferença na mitigação desses efeitos.
A adoção é, em sua essência, um ato de proteção e um convite à reconstrução de laços. Mas não basta a transferência legal ou o acolhimento físico: a formação da identidade da criança exige atenção continuada — à narrativa sobre a origem, à reparação das perdas, ao reconhecimento cultural e ao suporte psicossocial. A adoção tardia, por concentrar maior parcela de desafios prévios, demanda políticas públicas e práticas familiares que priorizem vínculo, verdade e pertencimento. No Brasil, os números recentes mostram que a solução passa menos por encontrar “mais adotantes” e mais por transformar a cultura da adoção — ampliando perfis aceitáveis, capacitando famílias e garantindo apoio amplo às crianças e adolescentes que esperam por um lar. Só assim a adoção poderá cumprir seu papel de oferecer não apenas um teto, mas também uma história integral e um lugar seguro para a construção de uma identidade coerente e resiliente.